Déficit de mão de obra na reparação automotiva abre oportunidades para jovens em busca do primeiro emprego, mas conexão entre formação e trabalho precisa ser mais efetiva; despertar interesse dos jovens na profissão e quebrar o preconceito das oficinas são alguns dos desafios
Texto e fotos: Fernando Lalli
O momento econômico do país é bom, as indústrias nacionais batem recordes de produção sucessivos desde o final da crise de 2009, e a frota brasileira de veículos (carros, motos, ônibus, comerciais leves e pesados) já ultrapassa os 44 milhões. Mas, mesmo assim, o setor da reparação automotiva ainda não atrai toda a atenção que merece quando o assunto é investimento e oportunidade – tanto por parte de empresas quanto pelos jovens à procura do primeiro emprego.
Alunos selecionados pela parceria SENAI/Carbwel Autopeças
durante o curso de Mecânico de Injeção Eletrônica
De acordo com o Sindirepa-SP, apesar de o setor de oficinas mecânicas independentes ser responsável pelo conserto de 80% de todos os veículos que rodam no Brasil, o número de oficinas diminuiu em quase 45% – de 172,2 mil em 1997 para 93,4 mil em 2012. Esta queda, segundo o presidente nacional da entidade, Antonio Fiola, decorreu da necessidade de adaptação do setor para acompanhar a tecnologia aplicada nos veículos. Tanto que se observa uma reação desde 2007, quando o total de oficinas abertas atingiu a marca mais baixa do período: 84.828 estabelecimentos.
Mas a relação do número de veículos por oficina aumentou no período. Hoje, considerando apenas a frota de carros, a média de veículos a serem reparados por cada mecânica independente aberta no país passa dos 290. Muito por causa dessa alta demanda, mesmo com as 745,9 mil vagas de emprego abrigadas atualmente pelas oficinas independentes, o setor sofre com a falta de mão de obra qualificada disponível. “Há falta de profissionais especializados no setor de reparação de veículos”, declara Fiola, citando a necessidade de o reparador ficar atento e se atualizar quanto ao constante aumento de eletrônica embarcada nos veículos, que exige mais conhecimento técnico, mais equipamentos nas oficinas e treinamento constante.
Teoricamente, considerando esse cenário, novos profissionais com estudo e sem “vícios de trabalho” deveriam facilmente se encaixar no mercado. Entretanto, na contramão da lógica, dados do SENAI-SP apontam que aproximadamente 25% de seus alunos na área automotiva se formam sem emprego garantido. Essa disparidade tem várias causas, às quais o setor precisa ficar atento.
“Massa crítica” com potencial
O agente de treinamento do SENAI, Valdir de Jesus, aponta o mural repleto de vagas de emprego abertas para mecânicos com especialização em diversas áreas e lamenta: “essa ainda é uma ação que precisamos melhorar”. Valdir administra os cursos da unidade Conde José Vicente de Azevedo, no bairro do Ipiranga, em São Paulo/SP, voltada ao ensino de sistemas automobilísticos. A escola forma aproximadamente 6 mil alunos por ano, o que, salienta o próprio Valdir, seria suficiente para abastecer parte significativa da demanda da capital paulista de mecânicos.
“Cerca de 1,5 mil a 1,8 mil alunos formados por ano não conseguem emprego”, revela. “Por um lado, há a necessidade de mercado, que sinaliza a falta de mão de obra e, por outro lado, existe uma formação representativa de jovens pelo SENAI que não é aproveitada no mercado de trabalho. Está faltando um mecanismo eficaz para juntar essas duas partes. Que existe massa crítica para ser aproveitada, isso existe”, enfatiza Valdir.
Ele cita que o Sindirepa-SP já têm agido na captação de jovens dentro da unidade do Ipiranga para a formação de um banco de dados para as oficinas mecânicas, mas que é necessária uma mudança de mentalidade dos empregadores para que os alunos sejam totalmente aproveitados.
“As empresas precisam entender que o SENAI qualifica os alunos, mas que eles precisam ter uma complementação de experiência. E, não tem jeito, é a própria empresa que necessita contribuir oferecendo esta oportunidade. Achar a pessoa prontinha, preparada para trabalhar, é algo que elas têm que esquecer”, destaca Valdir. “Mas a grande vantagem nesse processo é que a empresa pode ter uma pessoa com potencial para se adequar à cultura dela”, ressalta.
Dentro da própria unidade do Ipiranga, o SENAI tem parcerias com diversas empresas que investem na formação de jovens para que sejam seus empregados, tanto para as fábricas quanto para as concessionárias. Entre elas, estão Fiat, Basf, GM e Porto Seguro, que patrocinam os cursos por meio de projetos sociais e dão subsídios extras para seus alunos, como transporte e alimentação. Mas ainda não são iniciativas que abasteçam diretamente as oficinas independentes.
Oportunidade para quem precisa (e quer)
Para Antônio Fiola, entre os fatores que geram o déficit de mão de obra na reparação está a falta de interesse do jovem pela profissão de mecânico, principalmente pela ausência de plano de carreira nas oficinas. Esse sintoma também é visto por Carlos Gomes de Moraes, diretor comercial da Carbwel Autopeças, localizada na Zona Norte de São Paulo/SP. Ele percebe que falta um empenho mútuo entre oficinas e jovens para que a ligação entre quem procura o primeiro emprego e a vaga seja feita. Mas salienta que falta, principalmente, interesse das oficinas em contratar recém-formados sem experiência. “Não adianta a oficina esperar por aquele mecânico experiente, que sabia de tudo, porque ele não existe mais no mercado. Esse mecânico abriu a sua própria oficina”, declara Carlos.
Para incentivar a contratação de jovens que precisam de oportunidade, SENAI e Carbwel se uniram em um programa que oferece cursos gratuitos de Mecânico de Motor Ciclo Otto (180 horas) e Mecânico de Injeção Eletrônica (120 horas). Os cursos são voltados para alunos indicados por oficinas mecânicas ou que foram escolhidos entre jovens a partir de 16 anos que moram próximos à região da loja de autopeças. Através de bolsas de estudo do SENAI incentivadas pela FIESP e destinadas a alunos de baixa renda, os primeiros 32 alunos selecionados puderam estudar de graça e terão a possibilidade de conseguir um emprego fixo nas mecânicas que se comprometeram a acolhê-los.
Alunos selecionados pela parceria SENAI/Carbwel Autopeças
durante o curso de Mecânico de Injeção Eletrônica
O diretor comercial da Carbwel conta que, no final de 2011, reuniu donos de oficinas e explicou que a iniciativa visava ajudar jovens carentes da comunidade, e pediu que dessem oportunidade de experiência para os alunos assim que concluíssem os cursos. “O objetivo maior é pegar essa garotada que está na rua e dar oportunidade para eles. E, além disso, formar mecânicos para as oficinas parceiras”, afirma Carlos. Ele afirma que já existem outras oficinas interessadas nos alunos que o projeto está formando.
Os estudantes foram escolhidos através de uma entrevista prévia feita pela própria Carbwel, buscando priorizar apenas quem estivesse realmente interessado em aproveitar os cursos. O resultado da triagem é que apenas um dos 32 alunos deixou o curso – e justamente porque conseguiu emprego em uma concessionária. “Essas vagas têm que ser destinadas a quem realmente vai dar valor a elas”, explica Valdir, falando sobre a dificuldade do SENAI em identificar alunos que realmente estivessem interessados em aproveitar os cursos e exaltando o trabalho de seleção da Carbwel. “Percebemos que precisávamos envolver pessoas e empresas que nos ajudassem a captar esses jovens”, conta, ressaltando que o nível de frequência dos bolsistas desses cursos é superior a dos cursos pagos por particulares.
Apadrinhamento
O modelo de parceria entre SENAI e Carbwel não é novidade no setor de reparação, muito menos é um trabalho fácil. Carlos afirma que já viu muitos projetos desse tipo fracassarem, bancados por diversas entidades. Por sua vez, dentro da parceria, além de fazer a seleção, a Carbwel se comprometeu a pagar o transporte dos alunos, mas o diretor comercial lamenta que não tenha condições financeiras de bancar todas as turmas que virão.
“Temos que achar padrinhos para os alunos, empresa que possam custear os transportes para esses garotos”, afirma. “Eu consegui bancar o transporte dos alunos para o primeiro curso, de Ciclo Otto, mas não tive condições de oferecer para o curso seguinte”, lamenta. O empenho de Carlos tem, também, uma motivação pessoal: dar uma oportunidade de estudo que ele mesmo não teve quando era adolescente. “Oportunidade que eu não tive de estudo eu estou transportando para esses garotos’.
Júlio de Andrade Xavier (esq.) e Marcelo Luiz (dir.) veem seus futuros
na área automotiva. “Nunca vai ficar sem serviço”, diz Marcelo
Júlio de Andrade Xavier, 20 anos, é um dos alunos que fizeram os dois cursos gratuitos pelo projeto, mas antes de ser indicado pela oficina RB Car, nunca tinha pensado em ser mecânico. “Fiz curso técnico de manutenção de computadores, mas sou meio curioso, na realidade. Pretendo seguir (na área automobilística) porque é uma área que eu gostei”, afirma Júlio. “Mexer com carro é muito legal”, sorri.
Carlos diz que os alunos vêem que o momento é propício para seguir uma carreira na área automobilística. “Nós comentamos com os alunos: ‘você já viu quantos carros tem na rua? Olha a oportunidade que você tem de trabalhar em uma mecânica ou concessionária’. Nós abrimos o leque para eles até de uma montadora, com o diploma do SENAI”, diz.
O aluno Marcelo Luiz, de 17 anos, recebeu a indicação pela oficina Ueda, onde já havia trabalhado, e sua visão da profissão comprova a observação de Carlos. “É uma área que eu gosto muito e que, eu acho, nunca vai parar, nunca vai ficar sem serviço”, estima Marcelo. Mas e se a tecnologia dos carros mudar, por exemplo, do motor a combustão para os motores elétricos? “Vai ter motor do mesmo jeito. É serviço pro mecânico. Não podemos parar de nos atualizar”, responde. “Estes cursos, aqui, são só o início. Para mim, que tenho só 17 anos, isso aqui é o começo”, arremata, esperançoso de que sua carreira prospere no mesmo ritmo de crescimento do setor.