Misturar diesel com gasolina, usar filtro de combustível no arrefecimento, etanol atacando injetores e óleo mais grosso em motores “cansados”: saiba por que você deve não acreditar em nada disso
Assim como o papel, a internet aceita tudo. Basta ter um celular conectado à rede e já é possível espalhar qualquer mensagem para qualquer canto do planeta em décimos de segundo. E o fato de que muitas plataformas e patrocinadores remuneram os produtores de conteúdo pelo número de acessos e/ ou inscritos é um incentivo à geração postagens que proporcionam explosões de visualizações. O problema é que, por vezes, essas postagens têm bases técnico-científicas bastante frágeis, ou mesmo, inexistentes.
Quem vive garimpando informação técnica para resolver problemas do seu dia a dia, como é o caso do mecânico automotivo, precisa saber filtrar aquilo que ouve e vê nas publicações afora e saber analisar as entrelinhas de cada mensagem. Uma tarefa que toma tempo e é bastante cansativa.
Mesmo que a responsabilidade pela postagem seja daquele que a faz, algumas informações se tornam “verdades” pela repetição constante que ecoa dos seguidores daquela fonte, replicando-se em ondas e chegando àqueles que procuram a forma certa de cuidar de seus automóveis da forma certa, mas acabam por, sem querer, causar um problema no veículo.
Cabe ao “Guerreiro das Oficinas” ajudar a disseminar a informação correta a seus clientes, afinal, ele é o especialista em que o proprietário do automóvel confia. Veja quatro mitos que estão circulando pela internet e por que eles não procedem.
MITO PARA ESQUECER, Nº1:
MISTURAR DIESEL NA GASOLINA MELHORA O FUNCIONAMENTO DO MOTOR CICLO OTTO
Uma onda de vídeos viralizou em 2021 mostrando proprietários de automóveis abastecendo veículos a gasolina ou flex com uma porcentagem determinada de diesel, com a alegação de que essa “aditivação” traria benefícios a motores ciclo Otto, tais como aumento da octanagem e uma suposta limpeza das peças internas e dos bicos. Não existem estudos científicos sérios que comprovem nem refutem essa possibilidade, mas ao analisar as variáveis envolvidas, fica muito difícil acreditar no sucesso da operação.
Assim como a gasolina e outros derivados, o diesel tem sua origem na destilação fracionada do petróleo cru. Suas frações que formam os produtos vão evaporando a diferentes temperaturas. Porém, as frações que compõem o diesel são mais pesadas, evaporando em torno de 300°C, enquanto as da gasolina evaporam em torno de 150°C. Além disso, o diesel é composto de vários hidrocarbonetos que são totalmente diferentes daqueles que formam a gasolina. Logo, é de se esperar que o comportamento dentro dos motores seja completamente diferente entre ambos os combustíveis.
A gasolina, por ser composta por frações mais leves, é mais inflamável. Seu retardo químico (tempo necessário antes da combustão para a completa evaporação e mistura com o ar e aquecimento) é menor do que o diesel. Além disso, com a gasolina, esse fenômeno exige temperaturas e pressões de câmara mais baixas. Dessa forma, o calor proporcionado por uma centelha elétrica é suficiente para iniciar a combustão da mistura. Já o diesel exige temperaturas mais elevadas para completar a sua evaporação, mistura com o ar e início de ignição.
Uma mistura de ar, gasolina e diesel admitida no interior de um motor ciclo Otto pode até queimar com a centelha da vela. Ou seja, o motor vai pegar e funcionar. No campo da teoria, o óleo diesel, por ter poder calorífico semelhante e uma resistência maior à compressão, pode funcionar como um aditivo levantador da octanagem da gasolina.
Se o motor em questão tiver uma alta taxa de compressão e gerenciamento eletrônico, capaz de corrigir os avanços de ignição em função da detonação, a mistura pode fazer com que o sistema trabalhe com elevadíssimos avanços de ignição, o que, no papel, permitiria desempenhos melhores do que aqueles exibidos com a gasolina sem a mistura.
Mas, nessa condição, o motor trabalhará forçado, operando com um combustível que necessita de maior temperatura e maior pressão na câmara para atingir uma boa combustão. Como o motor ciclo Otto não foi projetado para isso, as consequências a médio e longo prazo, podem ser sérias: não se sabe os efeitos na vida útil do motor; que depósitos podem se formar no tanque, câmaras de combustão, sondas lambdas e catalisador; os efeitos nas emissões; os efeitos do enxofre motor a gasolina; os efeitos no óleo lubrificante; quais as reações químicas que podem ocorrer entre a gasolina e o diesel, entre outros.
É necessário mencionar também que uma das formas mais comuns de adulteração de gasolina encontrada no mercado é a mistura com o próprio diesel – um combustível cerca de 25% mais barato que a gasolina comum e que, em quantidades pequenas, pode ser indetectável em laboratório. Por isso, tenha atenção máxima com recomendações suspeitas e resultados milagrosos.
MITO PARA ESQUECER, Nº2:
ETANOL CORRÓI INJETORES DE COMBUSTÍVEL
Este tema é para lá de controverso. Não existe literatura técnica ou estudos publicados que comprovem ou refutem a tese de que o etanol, como sai das bombas nos postos de combustível por si só, seja um fator de corrosão de válvulas injetoras ou bombas de combustível. Mas são inúmeros os casos relatados de acúmulo de goma nos bicos, sujeira, travamento (aberto ou fechado) dos injetores, entre outros.
Fabricantes de automóveis e grandes empresas desenvolvedoras de sistemas de injeção eletrônica afirmam que a maioria desses sintomas podem ser provocados não pelo tipo do combustível em si, mas pela qualidade dele. Ou seja, independentemente de ser etanol ou gasolina, o combustível adulterado ou envelhecido é que pode provocar os problemas que muitos atribuem apenas ao combustível vegetal. De acordo com Pereira e outros (2016), o monitoramento da qualidade do etanol carburante é uma exigência social crescente, a fim de garantir que o produto ofertado no mercado esteja de acordo com a regulamentação vigente. Ou seja, antes da liberação do produto à sociedade cabe, a quem de direito (produtor, e/ou distribuidor, e/ou agente fiscalizador), analisar quimicamente cada lote produzido, a fim de garantir a qualidade do produto.
Pois, de acordo com essa mesma referência, a presença em excesso de alguns compostos orgânicos (ésteres, cetonas, aldeídos e uma variedade de ácidos orgânicos) e metais, comumente encontrados no álcool carburante (por serem provenientes dos processos de fermentação alcoólica), podem ser prejudiciais tanto a saúde das pessoas (emissão de poluentes) como à vida útil dos veículos.
“Um estudo prévio deste porte permite que sejam conhecidas, as entidades químicas existentes na matriz, e possibilita depreender, se estes teores presentes serão nocivos à saúde pública ou se apresentam algum risco de dano futuro nos componentes do veículo automotor.” (PEREIRA et al, 2016).
Pereira e outros (2016), destacam a suscetibilidade de alguns destes compostos (aldeídos) à oxidação espontânea, que gera ácidos carboxílicos, que aumentam a acidez do combustível. Acidez esta que também é oriunda dos ácidos minerais, utilizados na produção do etanol, para prevenir a evolução de microrganismos.
No entanto, esta mesma referência alerta que também é preciso considerar a oxidação espontânea do etanol, ao seu correspondente ácido orgânico: o ácido acético. Assim, a avaliação da acidez (pH), constitui um parâmetro de crucial importância, para a manutenção das condições ideais para a comercialização do etanol combustível.
Posicionamento este que converge com os de:
- Ambrozin e outros (2009), que afirmam que os resultados de estudos indicaram o pH como um fator determinante de corrosão e os íons cloreto, sulfato, acetato e a água, como as principais impurezas associadas ao processo corrosivo¹.
- Ecolab (2022) que afirma que a corrosividade do etanol no combustível piora quando o pH do etanol se encontra fora da especificação. Corrosividade esta que pode ser atenuada ou inibida através do uso de aditivos inibidores. Verificações e aditivações essas que, “muito dificilmente” (para não dizer nunca), são feitas por “fontes não confiáveis” do produto. Ressalte-se: da mesma forma, a gasolina quando adulterada ou envelhecida também pode causar sintomas semelhantes. Logo, a causa do ataque ao sistema de alimentação e injeção de combustível se deve a fatores que estão fora do controle das engenharias – ou seja, a adulteração e o envelhecimento. Saber diferenciar uma coisa da outra é necessário para evitar generalizações e encarar a real causa do problema.
MITO PARA ESQUECER, Nº3:
FILTRO DE COMBUSTÍVEL NO ARREFECIMENTO AJUDA A LIMPAR O SISTEMA
Outro caso de procedimento que viralizou em 2021 como solução paliativa de baixo custo, a inserção de um filtro de combustível na linha de retorno ao reservatório de expansão teria como suposto objetivo reter impurezas do líquido de arrefecimento após a manutenção neste sistema. Profissionais que adotaram esse recurso alternativo alegam que, mesmo após a limpeza completa do arrefecimento, o líquido ainda carrega impurezas que precisam ser removidas.
A adaptação de um filtro que não foi feito para trabalhar com um determinado tipo de fluido com certeza trará efeitos adversos ao sistema. A começar pela adição de uma restrição não prevista em projeto em um sistema de bombeamento como o de arrefecimento, o que pode provocar uma perda de carga no sistema, cuja previsão não foi feita pelo fabricante da bomba. Consequências: diminuição da vazão, diminuição da pressão de trabalho, principalmente após o filtro, o que pode levar até à cavitação do sistema.
As bombas d’água que equipam os motores a combustão, devido a sua limitação dimensional, não possuem muita “folga” na curva de desempenho, pois foram fabricadas para atuar em uma condição controlada e específica. A introdução de qualquer dispositivo (singularidade) na linha de bombeamento, aumenta a perda de carga do sistema e pode influenciar negativamente a vazão e a pressão do sistema de arrefecimento.
Além do filtro causar um problema que não existia no sistema de arrefecimento (restrição da circulação do fluido e cavitação), ele não corrige o problema original, que é a sujeira no líquido provocada pela corrosão interna. Se há “detritos” a serem filtrados no arrefecimento, significa que ainda há problemas de corrosão e/ou cavitação no sistema, algo que a simples troca do líquido não vai solucionar. O mecânico precisa investigar onde está a origem do problema, ou seja, qual peça está corroída, pois, se já há esse desprendimento significativo de material, o motor pode estar na iminência de um vazamento – seja externo ou, ainda pior, interno.
Consultadas sobre a questão, duas fabricantes de filtros falam sobre os perigos desse tipo de procedimento paliativo. “O filtro de combustível é desenvolvido para receber combustível nele. Toda mídia filtrante passa por uma bateria de testes para avaliar se não vai receber nenhum ataque químico, nenhum tipo de degradação pelo combustível. Essa avaliação não é feita com líquidos de arrefecimento. Então pode ser que a composição química do fluido venha a causar algum dano ao elemento filtrante, que pode acabar se degradando, despedaçando-se e soltando materiais particulados no sistema de arrefecimento. Nós não recomendamos essa prática”, afirmou o Consultor Técnico Comercial da Tecfil, Odair Júnior.
A Hengst também afirma que esse recurso não é válido, pois, mesmo instalado na linha de retorno, o filtro se torna uma restrição que levará à criação de vácuo no sistema, criando uma pressurização não prevista no sistema, forçando vedações e podendo levar desde vazamentos até a cavitação . “O retorno do arrefecimento tem que ter uma pressão mínima para garantir a vazão do líquido e evitar que fique com vácuo dentro da linha. Esse vácuo pode gerar cavitação. Se for um motor de camisa molhada, ele vai começar a perfurar, vai criar cavitação. Se é um motor de camisa seca, vai corroer a camisa, pode estragar o bloco. Então a falta de manutenção e mais a colocação de um filtro desses pode gerar um outro dano que nada tem a ver com o problema original”, declarou o especialista da Assistência Técnica da Hengst, Rodolfo Cafer.
MITO PARA ESQUECER, Nº4:
MOTORES “CANSADOS” PRECISAM DE ÓLEO MAIS VISCOSO
Esse é um mito que vem de muito tempo e está enraizado na cultura automotiva. Um paliativo que, no passado, quebrou o galho de muita gente, ao dar uma pequena sobrevida a motores “cansados”. Nessa época, além dos motores serem mais tolerantes às variações de viscosidade dos lubrificantes (eram de tecnologia mais antiga), não havia catalisadores, sondas lambdas, ou as rígidas regras de emissão que hoje imperam. Ou seja: bastava o motor parar de “fumar” e “rajar”, que tudo estava OK. Uma marcha lenta um pouquinho mais elevada e um pouquinho mais rica resolvia o problema de funcionamento.
No entanto, as exigências do mercado (mais eficiência e menores emissões), forçou a evolução tecnológica dos motores: tolerâncias mais apertadas, instalação de dispositivos auxiliares (variadores de fase), assim como a operação em temperaturas bem mais elevadas. Surge então um motor que exige um lubrificante que não só deve apresentar uma viscosidade rigidamente controlada (dentro de uma determinada faixa), como estabilizada. Consequentemente, os lubrificantes e os procedimentos de manutenção automotiva também precisaram evoluir.
Variações muito grandes de viscosidade podem fazer com que o lubrificante não entre na folga onde deveria entrar (viscosidade muito alta) ou o escape dela (viscosidade muito baixa), provocando o mau funcionamento de tuchos hidráulicos, variadores de fase e suas desagradáveis consequências. Em casos mais extremos, uma falha de lubrificação de eixos e mancais: um verdadeiro desastre.
Muitos manuais de veículos mais recentes preveem viscosidades diversificadas para os lubrificantes de motor. No entanto, essas recomendações, levam em conta a faixa de temperatura ambiente de operação do veículo, e devem ser seguidas à risca. Não se conhece qualquer regra de que seja obrigatório adotar preventivamente um lubrificante mais viscoso só porque o motor está muito rodado.
Se o motor tem quilometragem avançada, mas funciona perfeitamente, recomende ao seu cliente manter a viscosidade e aprovação de montadora previstas no manual do veículo com um óleo de qualidade comprovada. Já quando o motor “cansa”, recomende a reforma e, quando esta não for possível, a substituição.
Texto Fernando Landulfo & Fernando Lalli
Fotos Arquivo O Mecânico
¹ De acordo com Ambrozin e outros (2009), o processo de corrosão mais frequente na natureza é o eletroquímico, que é espontâneo, ocorre a baixas e médias temperaturas, envolve obrigatoriamente a presença de água e a transferência de elétrons. Ocorre devido à diferença de potencial químico entre o metal e o meio onde se encontra, envolvendo a reação desses materiais com substâncias não-metálicas (O2, H2S, CO2 etc.) presentes nesse meio.
REFERÊNCIAS
- AMBROZIN, Alessandra Pepe; KURI, Sebastião Elias; MONTEIRO, Marcos Roberto. Corrosão Metálica Associada ao Uso de Combustíveis Minerais e Biocombustíveis. Química Nova. São Carlos, vol. 32, n. 07, p. 1910-1916, ago. 2009. Disponível em: https://www.scielo.br/j/qn/a/TgBpQsfTF7X8t9gjhQmVX5w/?lang=pt. Acesso em: 17/01/2022.
- Inibidores de corrosão por etanol. Ecolab. Disponível em: https://pt-br.ecolab.com/solutions/ethanol-corrosion-inhibitors#f:@websolutions=[Inibidores%20de%20corros%C3%A3o%20por%20etanol]&f:@webapplications=[Prote%C3%A7%C3%A3o%20contra%20corros%-C3%A3o]. Acesso em 17/01/2022.
- PEREIRA, Francisco C.; LIMA, Francisco José S.; SILVA, Ademir O. da. Uma Breve Revisão sobre alguns Aspectos do Álcool Combustível Veicular e a Análise Quantitativa de Espécies Químicas Presentes nesta Matriz Energética. Revista Virtual de Química. Natal, vol.8, n. 5, p. 1702-1720, set./out. 2016. Disponível em: http://static.sites.sbq.org.br/rvq.sbq.org.br/pdf/v8n5a25.pdf. Acesso em 17/01/2022.
Quando a gente não detém a informação ou não buscar ela a gente faz tanta besteira no dia a dia mas quando a gente tem informação de para que serve no que vai fazer aí é outra diferença
Ótima matéria. Isso serve pra abrir a mente de quem tá acostumado com velhos costumes e que hoje em dia devem ser banidos.