Artigo | Misturar combustíveis: até onde vale a pena?

MISTURAR COMBUSTÍVEIS

Fazer experiências em motores projetados para funcionar com apenas um combustível, ou em ciclos de combustão diferentes, pode, sim, levar a danos a curto, médio e longo prazo

 

Um dos assuntos mais quentes e polêmicos que atualmente circulam nas redes sociais e alguns canais do YouTube, é a mistura de combustíveis. Esses experimentos estão sendo feitos tanto nos motores de ciclo Otto como nos de ciclo Diesel. Sendo que cada parte (a favor ou contra), defende ferozmente o seu posicionamento, apresentando as mais variadas argumentações.

Só que alimentar motores de combustão interna, pelo menos no que diz respeito aos veículos automotivos, com “misturas” de diferentes combustíveis não é nenhuma novidade. Não, não se trata da atual tecnologia “Flex Fuel” que, por definição, permite ao motor ciclo Otto ser alimentado tanto com etanol como com gasolina ou, mesmo, uma mistura homogênea entre os dois (em qualquer proporção).

Basta lembrar que a gasolina comercializada nos postos de abastecimento (gasolina C) é, segundo os incisos II e IV do artigo 3º da Resolução 807/2020 da ANP¹, por si só, uma mistura de 2 diferentes combustíveis:

III – Gasolina C comum²: combustível obtido a partir da mistura de gasolina A comum e de etanol anidro combustível, nas proporções definidas pela legislação em vigor; e

IV – Gasolina C premium: combustível obtido a partir da mistura de gasolina A premium e de etanol anidro combustível, nas proporções definidas pela legislação em vigor;” (ANP, 2020, nosso negrito).

Além disso, a prática de misturar diferentes combustíveis não é uma exclusividade da gasolina. Quem viveu os anos 90 lembra muito bem de uma crise de abastecimento de etanol em 1996, que levou o governo Federal a adotar um novo combustível: o MEG (60% de etanol hidratado, 34% de metanol e 6% de gasolina). Combustível esse que, de acordo com Alacarde (2008), substituiu, na ocasião, com igual desempenho, o escasso etanol hidratado.

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Nesse ponto, é importante citar que de acordo com a Resolução 10/2015 da ANP, o etanol combustível, o etanol hidratado combustível e o etanol hidratado combustível premium não são constituídos por misturas similares à do MEG. As características que devem ser apresentadas estão descritas na Resolução ANP 19/2015.

Já no que diz respeito ao óleo Diesel, suas especificações e porcentagens de mistura com biodiesel³, podem ser encontradas nos seguintes documentos: Resolução ANP 50/2013, Regulamento Técnico ANP 4/2013, Resolução CNPE 16/2018 e Despacho ANP 621/2019.

Pois bem, nos dias de hoje, a decisão pela alimentação com gasolina, etanol ou uma mistura, nos motores de tecnologia “Flex Fuel”, costuma levar em consideração fatores de curto prazo, como custo, autonomia e desempenho do veículo.

Dependendo da taxa de compressão utilizada no motor, um ou outro combustível pode ser favorecido. Embora o etanol tenha um poder calorífico menor do que o da gasolina, sua maior resistência a compressão permite a utilização de um avanço de ignição maior, o que, associado a uma mistura levemente mais rica, pode aumentar a potência extraída.

Conforme a diferença de preço entre os combustíveis, o aumento de consumo, provocado pela mistura mais rica, pode ser amortizado, tornando o uso do etanol mais vantajoso. Por vezes alguns usuários de tecnologia “Flex Fuel”, tentam misturar pequenas quantidades de gasolina ao etanol, a fim de aumentar o poder calorífico do combustível, para diminuir o consumo.

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Tais tentativas podem até obter sucesso, dependendo da taxa de compressão do motor e da octanagem da gasolina utilizada. No entanto, é preciso ter em mente que gasolinas de alta octanagem custam mais caro. Logo, dependendo da quantidade de gasolina misturada, a vantagem econômica desaparece. Ou seja: não existe receita mágica.

É importante destacar que, como esses motores foram projetados e testados para utilizar esse tipo de mistura, tais experiências em nada deveriam os prejudicar. Mas tentar utilizar misturas em motores projetados para funcionar com apenas um combustível, ou em ciclos de combustão diferentes, pode, sim, levar a danos a curto, médio e longo prazo.

 

O QUE CADA MISTURA PODE PROVOCAR?

Como exemplo, pode-se citar o uso de gasolina em motores a etanol. A mistura admitida pode, em determinadas situações, entrar em detonação. Se o sistema de gerenciamento eletrônico do motor não conseguir eliminar o fenômeno, por meio do atraso da centelha e enriquecimento da mistura, pode ocorrer pré-ignição nas câmaras de combustão, cujos resultados são bem conhecidos dos “Guerreiros das Oficinas”. Isso sem falar das desvantagens funcionais que o mencionado atraso na ignição pode ocasionar.

Por sua vez, adicionar etanol nos motores a gasolina (além dos regulamentares 27% já presentes) pode provocar, além de problemas de funcionamento (marcha lenta irregular, dificuldade de partida a frio, perda de desempenho) corrosão nas partes não projetadas para ter contato com etanol. Ou seja, mais alguns problemas bem conhecidos dos mecânicos.

No entanto, por pior que sejam os resultados, ambos os combustíveis são destinados a motores ciclo Otto e cuja mistura já foi estudada e testada.

O problema reside em se misturar, sobretudo na gasolina, um combustível destinado a outro ciclo motor. Não seria de se estranhar uma melhora do desempenho a curto prazo, fruto da mistura de uma pequena quantidade de óleo Diesel na gasolina. Afinal de contas, além de ambos os combustíveis terem um poder calorífico próximo, o óleo Diesel, por ter uma resistência maior à compressão, pode funcionar como um aditivo levantador da octanagem da gasolina.

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Se o motor em questão tiver uma alta taxa de compressão e gerenciamento eletrônico, capaz de corrigir os avanços de ignição em função da detonação, a mistura pode fazer com que o sistema trabalhe com elevadíssimos avanços de ignição, o que permitiria a exibição de desempenhos melhores do que aqueles exibidos com a gasolina sem a mistura.

Porém, algumas das perguntas que ainda não foram respondidas são:

a) Quais as reações químicas que podem ocorrer entre a gasolina e o diesel?

b) Quais produtos podem ser formados e depositados, à médio e longo prazo, dentro dos tanques e sistemas de injeção eletrônica?

c) O que o enxofre constante no diesel pode provocar nos componentes do sistema de injeção eletrônica?

d) Que tipos de produtos podem ser formados durante a queima dessa mistura e que tipo de efeito terão sobre o catalisador e sondas lambda pré e pós-catalisador?

e) Como ficam as emissões desses veículos ao queimar essas misturas?

f) Que tipos de depósitos podem ser formados nas câmaras de combustão à médio e longo prazo?

g) Que efeitos esses depósitos podem ter sobre o desempenho e vida útil do motor?

h) O que os gases resultantes da queima dessas misturas vão fazer com o lubrificante do motor?

As respostas a essas e outras perguntas, assim como conclusões sólidas, exigem estudos e testes baseados em metodologia científica, que tornam os resultados obtidos indiscutíveis. Estudos esses que ainda não foram publicados.

Logo, no presente momento, é preciso ter muita cautela a respeito. Evite qualquer experiência sem embasamento científico.

 

Artigo por Fernando Landulfo

 


¹ ANP: Agência Nacional de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis.

² A resolução 807/2020 da ANP não faz distinção entre as denominações comerciais: gasolina comum e gasolina aditivada. Ambas se enquadram no tipo C comum. A principio a gasolina aditivada é gasolina C comum na qual o distribuidor adiciona um pacote de aditivos detergentes, dispersantes e até mesmo antioxidantes.

³ Biodiesel: “combustível renovável obtido a partir de um processo químico denominado transesterificação. Por meio desse processo, os triglicerídeos presentes nos óleos e gordura animal reagem com um álcool primário, metanol ou etanol, gerando dois produtos: o éster e a glicerina. O primeiro somente pode ser comercializado como biodiesel, após passar por processos de purificação para adequação à especificação da qualidade, sendo destinado principalmente à aplicação em motores de ignição por compressão (ciclo Diesel)” (ANP, 2021).

 



 

REFERÊNCIAS:

 

 

  • AGENCIA NACIONAL DE PETRÓLEO, GAS NATURAL E BIOCOMBUSTÍVEIS. RESOLUÇÃO Nº 807, DE 23 DE JANEIRO DE 2020. Estabelece a especificação da gasolina de uso automotivo e as obrigações quanto ao controle da qualidade a serem atendidas pelos agentes econômicos que comercializarem o produto em todo o território nacional. Disponível em: https://www.in.gov.br/web/dou/-/resolucao-n-807-de- -23-de-janeiro-de-2020-239635261. Acesso em 11/10/2021.

 

 

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